10 de Dezembro de 2009, na sala principal do Teatro Maria Matos, em Lisboa
De cada vez que faço uma folha de sala para um espectáculo que levou alguns meses a realizar, sinto que, de algum modo, me estou a trair.
Os protocolos que institucionalizam "o espectáculo" fazem-me ceder a criar esse objecto que é uma espécie de explicação do que fazemos, para que se perceba melhor o que fizemos, pois, parece que é um dado adquirido que o espectáculo dificilmente se explicará por si próprio.
Que dizer então? Que acrescentar mais ao que já está dito e feito e que vocês irão presenciar?
Poderia dizer que é um texto de Pessoa muito interessante e blá blá blá.
Que se relaciona com o tempo que vivemos e com o tempo que não vivemos e outras coisas blé blé blé.
Que demos cambalhotas e piruetas e fazemos todo o tipo de palermices e bló bló bló.
Que engolimos espadas e cuspimos fogo e glú glú glú.
Apesar da confessa luxúria, há algo que me ocorre pedir-vos. Algo que convoca o vosso estatuto de testemunhas.
Num certo momento do passado desta peça, a criatividade necessitou de um impulso subtil ao qual desconhecíamos a forma de responder.
Nessa altura escrevi para os actores um pequeno texto que a seguir transcrevo.
olá meus queridos actores
nunca nada é de vez, nem para sempre, nem talvez o nada de sermos assim devemos poder guardar
ou talvez seja melhor dizer que é necessário exibirmos as nossas capacidades de espanto.
todos e sempre nos podem espantar com a sua prestação neste mundo
basta colocar os pés daquela maneira especial que nos encanta
mover o braço com a graciosidade do animal que nos habita quando ataca
falar, dizer, soar, com a beleza da luz a rasgar os corpos e tudo o que era trevas que travava a nossa ligação com alguma coisa que se tornou de novo indefinida e deliciosa para o bem estar retornar por instantes para dentro de cada um de nós o espírito sobrevoar o telhado interior da alma
pousar nas asnas da casa desfazendo o pó longamente acumulado por ali
naqueles sítios em que ninguém chega nem sequer as mulheres e nesses delicados momentos de êxtase o nosso braço o melhor instrumento da nossa vontade depois das nossas mãos depois do olho que abraça o mundo por entre o ar e as pedras nesses instantes infinitos todos nós sermos outra coisa e não raiva outra coisa e não amor nem amizade nem indiferença qualquer outra coisa que ninguém sabe o que somos mas não somos nós nem o outro de que tantos falam e desejam somos um desfazer um perder-se em abandono até se desfazer de novo tudo em brilhos e cacos e os nossos olhos chorarem de sermos tanto e assim e apenas e nada
Um pedido: olhem para todos os actores e artistas em busca desse momento de espanto e medo.
Procurem, indaguem e exijam dos espectáculos momentos infinitamente difíceis de entender e de serem alcançados. Apoiem-nos e derrotem-nos com o vosso querer e a ambição do vosso olhar.
São eles, os actores, quando falham e quando acertam, o principal motivo desta nossa reunião.
É a eles que devemos tudo: a exigência, a vénia, o desprezo e a adoração.
Nestes momentos é para eles e para vocês, que desejo ter feito talvez
bons espectáculos
JGM
Dezembro de 2009
De cada vez que faço uma folha de sala para um espectáculo que levou alguns meses a realizar, sinto que, de algum modo, me estou a trair.
Os protocolos que institucionalizam "o espectáculo" fazem-me ceder a criar esse objecto que é uma espécie de explicação do que fazemos, para que se perceba melhor o que fizemos, pois, parece que é um dado adquirido que o espectáculo dificilmente se explicará por si próprio.
Que dizer então? Que acrescentar mais ao que já está dito e feito e que vocês irão presenciar?
Poderia dizer que é um texto de Pessoa muito interessante e blá blá blá.
Que se relaciona com o tempo que vivemos e com o tempo que não vivemos e outras coisas blé blé blé.
Que demos cambalhotas e piruetas e fazemos todo o tipo de palermices e bló bló bló.
Que engolimos espadas e cuspimos fogo e glú glú glú.
Apesar da confessa luxúria, há algo que me ocorre pedir-vos. Algo que convoca o vosso estatuto de testemunhas.
Num certo momento do passado desta peça, a criatividade necessitou de um impulso subtil ao qual desconhecíamos a forma de responder.
Nessa altura escrevi para os actores um pequeno texto que a seguir transcrevo.
olá meus queridos actores
nunca nada é de vez, nem para sempre, nem talvez o nada de sermos assim devemos poder guardar
ou talvez seja melhor dizer que é necessário exibirmos as nossas capacidades de espanto.
todos e sempre nos podem espantar com a sua prestação neste mundo
basta colocar os pés daquela maneira especial que nos encanta
mover o braço com a graciosidade do animal que nos habita quando ataca
falar, dizer, soar, com a beleza da luz a rasgar os corpos e tudo o que era trevas que travava a nossa ligação com alguma coisa que se tornou de novo indefinida e deliciosa para o bem estar retornar por instantes para dentro de cada um de nós o espírito sobrevoar o telhado interior da alma
pousar nas asnas da casa desfazendo o pó longamente acumulado por ali
naqueles sítios em que ninguém chega nem sequer as mulheres e nesses delicados momentos de êxtase o nosso braço o melhor instrumento da nossa vontade depois das nossas mãos depois do olho que abraça o mundo por entre o ar e as pedras nesses instantes infinitos todos nós sermos outra coisa e não raiva outra coisa e não amor nem amizade nem indiferença qualquer outra coisa que ninguém sabe o que somos mas não somos nós nem o outro de que tantos falam e desejam somos um desfazer um perder-se em abandono até se desfazer de novo tudo em brilhos e cacos e os nossos olhos chorarem de sermos tanto e assim e apenas e nada
Um pedido: olhem para todos os actores e artistas em busca desse momento de espanto e medo.
Procurem, indaguem e exijam dos espectáculos momentos infinitamente difíceis de entender e de serem alcançados. Apoiem-nos e derrotem-nos com o vosso querer e a ambição do vosso olhar.
São eles, os actores, quando falham e quando acertam, o principal motivo desta nossa reunião.
É a eles que devemos tudo: a exigência, a vénia, o desprezo e a adoração.
Nestes momentos é para eles e para vocês, que desejo ter feito talvez
bons espectáculos
JGM
Dezembro de 2009
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